Editorial
Os desafios de lidar com um sistema biológico Zen
DOI: https://doi.org/10.46833/reumatologiasp.2016.15.3.5-7A imunologia permeia amplamente o universo das doenças reumáticas, especialmente aquelas de natureza inflamatória sistêmica. De fato, o processo inflamatório, uma das características fundamentais das doenças reumáticas, é uma manifestação essencial da atividade do sistema imunitário. Em suas vertentes inata e adaptativa, o sistema imunitário está diuturnamente promovendo algum grau de inflamação. No estado fisiológico, a atividade do sistema imunitário não é percebida, pois se restringe ao âmbito localizado de focos descontínuos de distúrbios mínimos que são prontamente resolvidos sem repercussão clínica e sem deixar sequelas. Na verdade, há um estado inflamatório mínimo em equilíbrio no indivíduo sadio. O processo inflamatório só é percebido quando alcança maiores dimensões em função de um distúrbio local ou sistêmico de maior monta. Ainda na esfera fisiológica, o processo inflamatório mais intenso tende a se resolver com a remoção do agente agressor, restaurando-se a homeostase. Do ponto de vista imunológico, a faceta fisiopatológica se inicia quando há anomalia nesse ciclo harmônico, ou seja, quando a resposta inflamatória é exagerada em face do agente desencadeante ou quando o processo inflamatório não consegue se resolver espontaneamente, ocasionando doenças inflamatórias crônicas. Parte dessas enfermidades ocupa a atenção do reumatologista e vem sendo categorizada como doenças autoimunes ao longo dos últimos 70 anos.
No início do século passado, havia grande resistência à aceitação do conceito de autoimunidade. Boa parte dos pesquisadores julgava pouco provável que o sistema imunitário pudesse deliberadamente agredir o próprio organismo. Ao final da década de 1940, com a descrição do fator reumatoide (autoanticorpos contra IgG) na artrite reumatoide1 e do fenômeno das células LE (autoanticorpos contra cromatina) no lúpus eritematoso sistêmico2, iniciou-se a ruptura da resistência ao conceito de autoimunidade. O processo prosseguiu com a demonstração de que coelhos imunizados com macerado de tireoide desenvolviam tireoidite e anticorpos antitireoide, e que linfócitos desses coelhos poderiam reproduzir a tireoidite em coelhos não imunizados3. Progressivamente foram identificados autoanticorpos em várias enfermidades inflamatórias crônicas, muitas das quais no universo da Reumatologia, porém, alcançando vários segmentos de outras especialidades da Medicina. Os autoanticorpos têm tido, portanto, um papel importante na sedimentação do conceito de autoimunidade. Ademais, esses elementos autorreativos têm tido um papel importante no manejo clínico dos pacientes, seja como marcadores diagnósticos, parâmetros de monitoramento de atividade e resposta terapêutica, seja como indicadores prognósticos. Em alguns casos, a disponibilização de novos autoanticorpos tem contribuído para o redimensionamento do espectro clínico de determinadas enfermidades, como foram os casos recentes da doença celíaca e da neuromielite óptica4,5. O presente número da Revista Paulista de Reumatologia (RPR) dedica um capítulo à descrição de novos autoanticorpos recentemente disponíveis e que deverão contribuir de forma prática na condução clínica de pacientes com doenças reumáticas autoimunes.
Por outro lado, é importante ressaltar que os autoanticorpos representam somente uma faceta do processo das enfermidades autoimunes, estando longe de explicar todos os aspectos dessas doenças. É bem sabido que as doenças autoimunes requerem predisposição genética adequada, o que pode ser resumido no aforisma de Starnopolsky de que “só tem febre reumática quem pode”6. De fato, sucessivos estudos abordando as mais variadas enfermidades autoimunes nas várias áreas da Medicina invariavelmente apontam fortes associações com alelos de genes do complexo principal de histocompatibilidade (MHC), chamando-se a atenção para a doença celíaca, a espondilite anquilosante, o diabetes mellitus tipo 1, a doença de Behçet e a artrite reumatoide. Dedicamos também um capítulo deste fascículo aos aspectos imunogenéticos, incluindo as associações dos alelos do MHC com a presença de alguns autoanticorpos. Nessa seção, estende-se a discussão também para importantes associações com outros polimorfismos gênicos que podem modular a suscetibilidade e o prognóstico de determinadas enfermidades, bem como a probabilidade de resposta terapêutica.
A terapêutica das doenças autoimunes começa a ter um grande aliado na produção de anticorpos monoclonais, proteínas de fusão e pequenas moléculas, agentes desenhados para interferir diretamente na intimidade de mecanismos moleculares subjacentes a importantes funções de diversos elementos do sistema imunitário. Essa é uma seara que já nos dá frutos excepcionais e que tem enorme potencial para o controle do processo inflamatório característico das doenças inflamatórias crônicas. No entanto, o uso de alguns desses medicamentos trouxe adventos inicialmente não previstos. Um deles é o aparecimento de autoanticorpos contra diversos antígenos em boa parte dos pacientes em uso de medicamentos imunobiológicos, especialmente aqueles voltados contra o fator de necrose tumoral (TNF). Outro advento interessante é o aparecimento de anticorpos contra os próprios anticorpos monoclonais terapêuticos. Ainda que totalmente humanos, os monoclonais são, de fato, proteínas estranhas ao organismo e têm, portanto, grande potencial de indução de anticorpos contra eles dirigidos. Denominados anticorpos antidroga (ADA), esses novos elementos têm o potencial de interferir na farmacodinâmica e na farmacocinética dos imunobiológicos, podendo contribuir para a falência secundária do tratamento e o aparecimento de reações imunológicas indesejadas. O capítulo dedicado a esse tema faz um abrangente apanhado de vários aspectos nessa área, incluindo os fatores moduladores da imunogenicidade dos imunobiológicos, métodos laboratoriais para detecção e algoritmos clínicos para lidar com o problema.
Um dos temas de grande destaque nos dias de hoje é o teste de pesquisa de fator antinúcleo (FAN) e seu impacto na prática clínica. Esse é um exame em uso há quase 70 anos, tendo passado por intensa e progressiva melhoria, representando um consenso mundial e sendo recomendado pelo Colégio Americano de Reumatologia como padrão ouro para rastreamento de autoanticorpos em pacientes com suspeita de doenças reumáticas autoimunes. Em que pese sua reconhecida utilidade, o FAN tem algumas limitações. Uma das principais é o fato de que se trata de um exame de grande sensibilidade e que apresenta resultados positivos em uma significativa parcela de indivíduos sadios e de pacientes não autoimunes. Ademais, o exame FAN é solicitado hoje por uma ampla gama de especialistas, acarretando baixa probabilidade pré-teste. O resultado é uma grande quantidade de resultados positivos de FAN em indivíduos sem doença autoimune aparente, situação denominada por alguns de síndrome do FAN positivo idiopático. Ultimamente, tem sido demonstrado que o padrão de FAN é um elemento importante na diferenciação de resultados provenientes de pacientes autoimunes e de indivíduos não autoimunes. Em tempo, especialistas na área em nosso País têm se mobilizado nos últimos 16 anos para promover a normatização e divulgação dos padrões de FAN. O Consenso Nacional para Padronização da Nomenclatura dos Padrões de FAN já desenvolveu cinco oficinas e quatro publicações, influenciando amplamente na prática e interpretação desse exame no Brasil7. Ademais, foi a fonte de inspiração para o desenvolvimento do International Consensus on ANA Patterns (ICAP), iniciado em 2014 em São Paulo, no bojo do 12º International Workshop on Autoantibodies and Autoimmunity8. Essa iniciativa teve aceitação mundial de todos os setores envolvidos nos vários aspectos relevantes ao exame do FAN9. Essas importantes iniciativas são vastamente revisitadas em um capítulo deste fascículo.
Finalmente, a imunidade inata! Por décadas, imunologistas em todo o mundo permaneceram verdadeiramente obcecados pelos aspectos da imunidade adaptativa, especialmente no que tange à fisiopatologia das doenças ditas autoimunes. Sem dúvida, linfócitos T, linfócitos B e seus autoanticorpos desempenham um papel na fisiopatologia das doenças autoimunes. Por outro lado, a imunologia nos ensina que o processo de ativação de células T e B é fortemente modulado por eventos da imunidade inata. A ativação de células dendríticas e a orquestração de eventos que culminam no estímulo eficaz e ativação da imunidade adaptativa requerem primordialmente o envolvimento da imunidade inata. Na verdade, fica cada vez mais claro que não existe uma fronteira formal entre esses dois braços do sistema imunitário, havendo ampla interação de todos os elementos já em momentos precoces de qualquer evento ofensor ou estimulador. Doenças classicamente consideradas fruto de distúrbios da imunidade adaptativa e de autoanticorpos apresentam evidência clara de participação expressiva da imunidade inata, como atestado pela flagrante assinatura de interferon tipo I em leucócitos do sangue periférico de pacientes com lúpus eritematoso sistêmico. Portanto, dedicamos um longo capítulo abordando múltiplos aspectos da imunidade inata e suas interações com elementos da imunidade adaptativa.
A imunologia é uma ciência maravilhosa que procura entender um dos mais complexos sistemas biológicos. O sistema imunitário tem funções análogas às do sistema neurológico, quais sejam, a percepção de estímulos externos e internos, processamento da informação, elaboração de uma resposta apropriada e capacidade de memorização. No entanto, as células do sistema neurológico estão ligadas por uma intrincada rede física de axônios e dendritos ao passo que as células do sistema imunitário estão livres e espalhadas na corrente sanguínea e na intimidade dos tecidos. A integração funcional do sistema imunitário se dá mediante interação de uma plêiade de receptores e uma miríade de gradientes flutuantes de mediadores bioquímicos diversos. São eventos altamente dinâmicos de natureza estatística e multiparamétrica, que garantem plasticidade e adaptabilidade ao sistema imunitário para proporcionar as respostas adequadas sob as mais diferentes situações de desafio. Entender os mecanismos subjacentes ao adoecimento desse sistema é o desafio de imunologistas, farmacologistas, reumatologistas e outros especialistas que lidam com enfermidades inflamatórias crônicas.
REFERÊNCIAS
- Rose HM, Ragan C. Differential agglutination of normal and sensitized sheep erythrocytes by sera of patients with rheumatoid arthritis. Proc Soc Exp Biol Med. 1948 May;68(1):1-6.
- Hargraves MM. Production in vitro of the L.E. cell phenomenon; use of normal bone marrow elements and blood plasma from patients with acute disseminated lupus erythematosus. Proc Staff Meet Mayo Clin. 1949;24:234-7.
- Witebsky E, Rose NR, Terplan K, Paine JR, Egan RW. Chronic thyroiditis and autoimmunization. J Am Med Assoc. 1957;164:1439-47.
- Fasano A. Celiac disease – how to handle a clinical chameleon. N Engl J Med. 2003;348:2568-70.
- Dellavance A, Alvarenga RR, Rodrigues SH, Kok F, de Souza AW, Andrade LE. Anti-aquaporin-4 antibodies in the context of assorted immune-mediated diseases. Eur J Neurol. 2012;19:248-52.
- Tarnopolsky S. Introducción al estudio del reumatismo y las enfermedades relacionadas. Prensa Med Argent. 1947;34:1092-5.
- Francescantonio PL, Cruvinel WM, Dellavance A, Andrade LE, Taliberti BH, et al. IV Brazilian guidelines for autoantibodies on HEp-2 cells. Rev Bras Reumatol. 2014;54:44-50.
- Chan EK, Damoiseaux J, Carballo OG, et al. Report of the First International Consensus on Standardized Nomenclature of Antinuclear Antibody HEp-2 Cell Patterns 2014-2015. Front Immunol. 2015;6:412.
- Chan EK, Damoiseaux J, de Melo Cruvinel W, et al. Report on the second International Consensus on ANA Pattern (ICAP) workshop in Dresden 2015. 2016;25:787-96.
Artigos
Imunogenética das doenças reumáticas autoimunes
Andressa Mathias
Viviane Cardoso
Sandro Félix Perazzio
Luís Eduardo Coelho Andrade
Aspectos clínicos de novos autoanticorpos em doenças autoimunes sistêmicas
Marcelle Grecco
Renan de Almeida Agustinelli
Alessandra Dellavance
Luís Eduardo Coelho Andrade
Imunogenicidade dos fármacos imunobiológicos
Mônica Simon Prado
Sara de Brito Rocha
Luís Eduardo Coelho Andrade
Evolução dos Consensos Nacional e Internacional para Padronização da Nomenclatura de Padrões de Autoanticorpos Contra Antígenos Celulares (ANA-HEp-2)
Monica de Jesus Silva
Alessandra Dellavance
Luís Eduardo Coelho Andrade
Wilson Melo Cruvinel
A contribuição da imunidade inata para o desenvolvimento de doenças autoimunes
Daniele Cristiane Baldo
Vanessa Ferreira
Luis Eduardo Coelho Andrade
Josias Brito Frazão
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